terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Retomada

por Luci Lahr

A pasta é simples, de material plástico, num azul inconfundível. Estava abandonada em um compartimento superior do armário. Para pegá-la era necessária uma pequena escada, dessas caseiras... ou uma cadeira com pés firmes também servia.

Faz alguns anos, talvez muitos anos, ela, a pasta, ficava mais acessível, ali, perto dos olhos e do coração. Nada de dificuldade, tudo simples, na mão.

Inúmeros eram os motivos para manusear essa pasta: felicidade, alegria, tristeza, angústia, saudade, novidade, nascimento, morte, namoro, faculdade, viagem, amor, casamento, trabalho, amizade. Era fácil, dava tempo, e fazia-se o tempo para abri-la.

Com o passar dos anos, a pasta recebeu um up grade. Subiu de patamar, e ficou escondida pelas alvas portas do armário, completamente livre de toda fuligem, poeira e desordem ambiental e emocional.

Um elástico frouxo pela ação do tempo prende timidamente as bordas da pasta que exala um quê de guardado. Nada tão ruim assim, se não fosse a falta de consciência do desprezo e do tempo que passou.

Ao abrir a pasta, é possível ver pequenas manchas amareladas sobre os papéis. Ação do tempo. Cartões, papéis, envelopes de vários tamanhos e cores. Os selos talvez tenham valor para os colecionadores, apenas. Cartões postais escritos e selados que um dia possam chegar ao seu destino com muita sorte e em tempo.

Dentro da mesma pasta, algo novo, de valor incalculável: um cartão e uma carta de aniversário. Eles foram encontrados recentemente e se destacaram em meio a uma farta correspondência contemporânea que se resume em boletos bancários conquistados pelo “sucesso” profissional e pessoal, em propagandas bem e mal elaboradas de pizzarias inventivas e de clínicas que prometem o corpo escultural e perfeito.

O cartão de aniversário é muito especial, feito à mão em uma cartolina, e exala carinho. Simples e lindo ao mesmo tempo, e está carregado de palavras sinceras,- coisa antiga e ultrapassada, diria um jovem internauta. A carta em papel de agenda, de um lado traz os mesmos dizeres de um cartão de aniversário enviado em 1985. Nessa, as palavras assumem uma voz interior de luta, constância, superioridade de ânimo e fé, e são reforçadas na outra face do papel de agenda pelo desejo sincero de felicidade, saúde e paz.

Escrever hoje não é fácil, nem mesmo que seja para as pessoas queridas. Requer tempo precioso... minutos que podem ser utilizados para telefonemas, fechamentos de negócios, respostas e leituras de muitos e-mails, talvez uns trinta terminados com os clássicos “abc”. Por economia e aproveitamento do tempo, até mesmo o braço do “c cedilha” deixou de existir.

Uma pena que o tempo economizado nos pseudos-abraços não seja aproveitado para atitudes simples e de valor inestimável. São aquelas atitudes impossíveis de delegar. Uma carta, por exemplo, pode representar muito para quem a recebe. Um telefonema, com palavras sinceras, pode modificar o dia de alguém. Uma visita mesmo que rápida, acompanhada por um abraço verdadeiro, pode assumir um significado imenso para uma pessoa querida.

O tempo passa tão rápido. As crianças crescem de uma hora para outra, os entes queridos envelhecem, e o papel cada dia mais amarelo, dentro do compartimento alvo e superior de um armário. Papéis desprovidos de quaisquer dizeres.

O alento é a tomada de consciência. A pasta já saiu do armário, está bem à vista. A qualquer momento uma correspondência será escrita, selada e enviada, mas no mesmo papel amarelado pelo tempo, com pequenas manchas e leve odor de guardado. Quem receber a carta ficará tão feliz, que sentirá o cheiro de flores do campo. Sim, flores do campo, pois no campo é o local onde é possível encontrar as coisas mais simples, que de tão simples têm o gosto daquilo que vale a pena na vida.
O conteúdo da pasta é muito simples. A sofisticação fica por conta de atitude e palavras.